segunda-feira, 6 de julho de 2009

Amém, automóvel*


Da praça fez-se a rua. Da calçada, o estacionamento. Louvemos ao Deus Carro pela desgraça alcançada.O espaço público é nosso altar cotidiano de sacrifícios. Oferecemos quatro vidas por dia em colisões e atropelamentos. Outras oito são entregues através de doenças respiratórias, problemas no coração, câncer e outros tipos de mortes lentas.

Também oferecemos o sacrifício diário dos que seguem vivos: penitentes castigados com muitas horas de trânsito, baixa qualidade de vida, péssimo acesso à cidade e ao espaço público.

Castigamos os infiéis (ou inferiores) com a degradação brutal do transporte público, com as calçadas-minadas, esburacadas, inexistentes ou ocupadas por nossas máquinas sagradas. Castigamos os rebeldes privando-lhes de ciclovias, ciclofaixas, semáforos de pedestres, respeito e transporte público durante a noite.

Oferecemos nossas riquezas para tratar feridos e enterrar os mortos. Gastamos o dinheiro de todos para beneficiar alguns: recapeamos e asfaltamos ruas, construímos viadutos, pontes e avenidas.

O Deus Carro é guloso por espaço; estimula luxúria, vaidade, avareza e orgulho através dos estímulos de consumo instantaneamente renovados pela máquina da propaganda; gera preguiça e ira em quem dirige e transforma toda a cidade em um verdadeiro inferno para vender o único Céu possível: o Sagrado Coração de metal, plástico e vidro.

Tanto no Céu, quanto na Terra. Poluímos o ar e derretemos o planeta. Destruimos bairros e comunidades inteiras para acomodar o fluxo e o estacionamento de um número cada vez mais insano de veículos. A cidade espalhada, segregada e agressiva é o território fértil para a manutenção da nossa fé. Acreditamos no medo, evitamos a convivência, odiamos aquele que se coloca à nossa frente como obstáculo para a velocidade vendida no comercial de tevê.

O Deus Carro e sua parceira Especulação espalharam a cidade, criaram imensos vazios urbanos, condomínios fechados e shoppings centers, tudo com amplo estacionamento ou manobrista no local. A rua é de ninguém, espaço poluído e abandonado que serve apenas para circularmos com nossa fé sobre quatro rodas. Amém, automóvel!


Texto de autoria desconhecida que circulou pela lista da CONEEG-BRASIL (Confederaçao Nacional de Entidades Estudantis de Geografia do Brasil).